João Câmara

Essa exposição sobre João Câmara entrelaça duas dimensões: uma de ordem social (os embates por visibilidade da produção artística do Nordeste no cenário artístico nacional que é apresentada na documentação exposta) e outra de ordem estética que aglutina algumas obras dos primeiros anos de construção da poética desse artista tão significativo da arte brasileira, fase pouco evocada nas mostras ocorridas no Recife. Seu ponto de partida é o grande prêmio recebido por João Câmara, aos 23 anos, no IV Salão de Arte de Brasília, em dezembro de 1967, desbancando artistas mais experientes e renomados como Aloísio Carvão, Lothar Charoux e Hélio Oiticica (que ganhou referência especial do júri). A comissão julgadora do certame formada pelos críticos Mário Pedrosa, Clarival do Prado Valladares, Walter Zanini, Mário Barata e Frederico Morais concedeu o prêmio pelo conjunto da obra de Câmara e do grupo de artistas pernambucanos selecionados no salão e considerou que “a representação pictórica de Pernambuco traz uma nota nova ao salão: Câmara contribuindo para a pintura brasileira com um elemento que lhe faltava – o vigor descritivo do protesto social, (…) violência e agressividade de sua mensagem pictórica, em si mesma de autêntica plasticidade”, conforme publicado por Pedrosa no texto Perspectiva de Brasília, no Correio da Manhã, em 17/12/1967. A disputa pelo grande prêmio do salão estava entre “o polo da vanguarda de uma arte cada vez mais formidavelmente universal, a ponto de vencer todas as discriminações de fronteiras culturais e políticas e o polo de uma arte deliberadamente regional numa insopitável vontade de afirmação dialetal ou nacional”, ou seja, a escolha era entre Hélio Oiticica e João Câmara. Ainda nas palavras do crítico pernambucano, “no campo das artes ditas plásticas, em todas as suas ramificações, o destino da arte brasileira se joga na dialética desses polos. Ambos legítimos, ambos fecundos, ou melhor, inevitáveis. Trata-se de um chegar ao tempo do outro, sem que isso perca o que traz em si de idiossincrático e de universal”. Venceu a nota nova. Importante salientar que João Câmara não era um desconhecido da comissão. Ele havia sido indicado por Valladares para a III Bienal de Córdoba, selecionado por Pedrosa para a I Bienal da Bahia e premiado, convidado a fazer exposição coletiva dos artistas de Pernambuco no MAC-USP por Zanini e visitado em seu ateliê em Olinda por Morais. A escolha de um jovem pintor nordestino foi celebrada. A quarta edição do Salão Nacional de Brasília foi um marco em muitos sentidos. Coordenado pelo então jovem crítico Frederico Morais, foi o primeiro a acolher o objeto como categoria artística, uma renovação de repertório institucional importante num momento de forte experimentação artística internacional. A contestação ao resultado do Salão veio de outras fontes. O artista paulista Nelson Leirner, selecionado com o trabalho Matéria e Forma, um porco empalhado com um presunto pendurado no pescoço e dentro de um engradado de madeira, enviou uma carta para os jornais confrontando o júri sobre os motivos de sua escolha. As respostas de Frederico Morais e Mário Pedrosa e de outros críticos de arte sobre o ocorrido foi apelidado de Happening da Crítica. O Departamento de Ordem e Política Social (DOPS) reagiu à parte dos trabalhos expostos. Agentes tentaram retirar as obras de Cla?udio Tozzi, Rubens Gerchman, José Roberto Aguillar e José Carlos Sade. A comissão julgadora afirmou que a exposição seria fechada se qualquer trabalho fosse removido do salão e no final o cronograma foi cumprido à risca. O arco temporal desta exposição abarca obras entre 1965 e 1971, respectivamente o ano anterior da primeira premiação internacional de João Câmara e o posterior à sua primeira mostra individual no Sudeste do Brasil. As matérias aqui presentes (provenientes dos acervos do artista e do crítico Frederico Morais) traçam a cronologia da inserção institucional e mercadológica nacional do artista e a recepção da crítica de arte, assim como a questão da visibilidade da arte produzida no Nordeste. Encontram-se artigos e notas sobre a III Bienal Internacional de Córdoba (1966), a exposição coletiva Oficina Pernambucana no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (1967), a seleção para a representação brasileira na Bienal de Paris e a participação na X Bienal de São Paulo (1969) e a exposição individual na Galeria Bonino, no Rio de Janeiro (1970). O público poderá observar o quanto a visibilidade do artista também representava uma maior presença da arte produzida no Nordeste e o confronto com códigos estéticos e uma história da arte hegemônica. Outro dado importante que essa documentação traz é o ambiente político do período mais duro da ditadura civil militar e o funcionamento do mundo da arte brasileira neste período tenebroso da história. As obras em exposição abarcam as principais questões abordadas por João Câmara, já presentes no início de sua trajetória, a saber: o seu olhar perspicaz para o poder e a sociedade brasileira nos âmbitos político, econômico, histórico e social que é transformado numa figuração estranha e singular, carregada de inspirações pictóricas de variadas procedências, mas que acaba por espelhar o cruzamento de cosmologias que forjaram o território chamado de Brasil. As pinturas estão agrupadas por afinidades compositivas, cromáticas e temáticas e apontam para a expansão narrativa gradual que precede a construção das grandes séries que acabaram por se tornar a característica mais marcante de sua produção. Gostaria de destacar a presença da obra Exposição e Motivos de violência premiada no Salão de 1967 juntamente com Homenagem a Sheldon (coleção privada) e que é proveniente do Museu de Arte de Brasília. Possivelmente essa é a primeira vez em que essa pintura é apresentada no Recife. O conjunto que forma a exposição João Câmara, Nota Nova – Ecos de 1967 é pertencente ainda ao Museu do Estado de Pernambuco e a diversos colecionadores particulares que gentilmente cederam suas obras. Mas por que fazer uma exposição que articula as dimensões coletiva e individual da obra de João Câmara em 2022? Por que olhar para 1967 ou para um recorte da produção inicial de um artista? O que esse período histórico e o que essas obras iluminam sobre o nosso presente? Quais são os ecos que Exposição e Motivos de violência ressoam na contemporaneidade? Num ano tão carregado de efemérides e de lutas sociais que buscam minar estruturas históricas de opressão é imprescindível colocar em diálogo e desnaturalizar tópicos e questões. Contextualizar a trajetória de um artista e os enfrentamentos por visibilidade e circulação significa compreender a dimensão política que atravessa cada caminho, que toda estética carrega uma ética e que são múltiplas as negociações. Num momento de tantas notas novas no campo da arte brasileira e internacional é sempre bom olhar para quem veio antes.

Cristiana Tejo – Curadora