SP-Arte 2025

Insólito Fim
Curadoria: Daniel Donato

Os trabalhos selecionados para o estande da Marco Zero na SP-Arte 2025 se valem de procedimentos alegóricos, conceituais ou simbólicos no esforço de dar forma às transformações estruturais que definem transições e rupturas entre épocas históricas. A ideia de um iminente fim dos tempos remete à lida com o rebaixamento de expectativas em relação ao futuro individual e coletivo. Nesta mostra, o fim se anuncia de muitos modos. Assim sendo, o estande é dividido em duas seções: a primeira é caracterizada pela representação simbólica cujos signos visam revelar uma visão oracular do futuro. A imaginação enigmática desses artistas incorpora elementos fantásticos e da escatologia cristã para evocar sentimentos difusos de risco e incerteza que definiram diferentes épocas. A segunda seção, por sua vez, trata da compreensão do fim enquanto drama existencial, sugerido por procedimentos nos quais se espelham rachaduras na terra, ausência da figura humana e grandes vazios cuja negatividade se faz sensível.

Apocalipse de Tereza ou A Serpente, produzido entre 2008 e 2009, pela artista recifense Tereza Costa Rêgo, é pivô desses diversos sentidos do fim articulados na exposição. Filha mais nova de uma família da elite açucareira pernambucana, Rêgo subverteu as expectativas sociais que delineava seu futuro para se engajar na militância política junto ao Partido Comunista do Brasil ao lado de seu companheiro, Diógenes Arruda Câmara — um dos dirigentes do Partido. Ao encetar este ato de revolta, Tereza vivencia o primeiro fim de uma de suas vidas. Sob o pseudônimo de Joana, ela renasce para fugir da perseguição decorrente do golpe de 1964. Inicialmente, Rêgo buscou exílio no Chile e, após a queda do governo de Salvador Allende, foi enviada à Paris pelo PCB. Durante os sete anos em que viveu fora do Brasil, acompanhou de perto alguns dos principais acontecimentos políticos do século XX. A experiência na clandestinidade passou a informar seu trabalho artístico, inclusive este painel, apresentado em São Paulo pela primeira vez. Essa análise de sua pintura como fim vivenciado em primeira pessoa é apoiada pelo próprio título da obra, que preserva a ambiguidade entre o apocalipse vivenciado por Tereza Costa Rêgo enquanto abandono do universo doméstico e familiar, bem como sinaliza sua interpretação particular do livro da bíblia.

No painel, o corpo contorcido de uma serpente de onze metros ocupa quase toda a superfície da tela. As suas dimensões reportam ao muralismo mexicano, à pintura de gênero histórico e aos murais que a artista realizou durante as Brigadas Populares de Olinda em meados dos anos 1980. Em seu interior, são figuradas cenas descritas em versículos pinçados do livro de apocalipse da Bíblia Católica, bem como motins, greves populares, batalhas históricas do Pernambuco — como a Batalha dos Guararapes —, cerimônias religiosas diversas, animais, florestas e seres fantásticos. Nas palavras da artista, essa trama de cenas contrastantes é explicada por uma pintura que visa a sublimação: “aí faço uma suruba, essa danação. Só que logo depois eu peço desculpa e pinto uma procissão. É a minha repressão judaico-cristã”.

Nas entranhas da serpente, dois corpos estendem suas mãos e simbolizam o momento de criação da humanidade: Adão e Eva. São figuras semi-translúcidas, fazendo alusão ao estado de inocência e sexualidade vivenciada como puro contentamento. Seus descendentes, por sua vez, não são retrata-dos em igual estado de deleite e harmonia. O que se segue são cenas vibrantes e assombrosas que se desenrolam ao longo de composições expansivas que configuram um arco narrativo de inspiração boschiana. Em paralelo ao corpo da serpente, versículos do livro de Apocalipse, cuidadosamente selecionados pela artista, são transcritos como coro cuja função dramática é o enquadramento do espetáculo. Contudo, a univocidade narrativa é, por vezes, quebrada por esse corpo ofídio que se contorce em diferentes orientações espaciais.

Em uma composição barroca e sincrética, que busca unidade entre elementos contrastantes, Tereza Costa Rêgo elabora uma interpretação secular do texto de revelação bíblico com críticas diretas a acontecimentos políticos e eclesiásticos de seu tempo. Se Cícero Dias viu que o mundo começava no Recife, Tereza Costa Rêgo se vale da história dessa cidade como o ponto de partida para sua visão para o fim dos tempos. Aqui, o inferno tem a vida terrena firmemente em suas garras. As alusões ao passado nacional e à história política recente são frequentes e remetem à militância política do artista.

Foi com esse passado em mente que Tereza Costa Rêgo conseguiu pintar uma linha do horizonte onde ninguém suspeitava. No interior da composição, um casal vestido de vermelho e portando uma bandeira de mesma cor é arrebatamento são as únicas do painel. Nelas, a artista retratou a salvação por meio de uma doutrina do amor, enquanto mistério do erotismo. Ela apresenta uma ordem de valores a partir da visão na qual a fé — religiosa, política e existencial — pode ser reconciliada com a aceitação da natureza, e a antiga cisão cristã entre o espírito e a libido pode ser superada — desafiando a morte e o demônio — por uma nova compreensão da natureza da divindade.

DANIEL DONATO