SP-Arte 2025
Advânio Lessa, Mira Schendel e Maria Martins
Curadoria: Clarissa Diniz
O emaranhado de linhas que preenche o ateliê de Advânio Lessa (1981) tem poucas semelhanças com as tradicionais oficinas de escultura, costumeiramente repletas de sólidos volumes. Nele, ao invés de blocos escavados, são espiralados empilhamentos de cipó, arranjos de fibras já tratadas, raízes e galhos tentaculares que se entrelaçam sensualmente num espaço que tem menos do caráter fabril do fazer escultórico, e mais da coreografia das matas de Minas Gerais onde Lessa encontra as matérias e intenções de sua obra.
Naquele ateliê, tramas de fibra vegetal em diferentes estágios de manipulação evocam a urdidura florestal na qual cresceu o artista, desde a infância acostumado a investigar os mundos visíveis e invisíveis que existem entre as montanhas que circundam Lavras Novas, onde nasceu e reside. Das tradições e saberes quilombolas dos quais é herdeiro, tem sido especialmente a cestaria que dá corpo à sua prática. Seguindo os veios do cipó, é com uma faca na mão que Advânio esculpe essa tão linear quanto sinuosa matéria, trançando-a em reverência às três gerações que, antes dele, já observavam, compreendiam e se relacionavam com esses e outros fios que – também imaterialmente – conectam fenômenos e corpos.
De galhos e cipós emergem a materialidade, a formatividade e a visualidade das esculturas e instalações de Advânio Lessa, as quais, pelo protagonismo de suas linhas, se aproximam do desenho. A cestaria oferece não só uma estética para sua obra, como também a ética de sua prática: partindo do caráter relacional dos cipós (e de outras formas de vida) em meio à mata, o artista se desfez da pretensão de conceber seu trabalho como um gesto artístico inaugural, preferindo integrá-lo à continuidade de movimentos e fluxos anteriores à sua própria existência. Mais do que criar, o trabalho de Advânio consiste em tramar as energias às quais suas obras estão ético-esteticamente implicadas e às quais ‘serve’ a partir de sua posição de artista, tal como define na conversa que acompanha este texto.
Se, de um lado, o “serviço”de Advânio politiza a dimensão de trabalho que é inerente à prática artística, por outro, o seu “servir” inscreve a arte como modo de enunciação e visibilização de forças comumente entendidas como espiritualidades ou religiosidades por sua vocação à religação com o mistério. Como dispositivos de contato, suas esculturas integram intrincadas composições de aspectos físico-químicos, eletromagnéticos, ontológicos e cosmológicos que não se imaginam como apartados entre si. Ao contrário, interligam-se como aquilo que teimosa e tortuosamente rama e circula por entre a verticalidade dos monumentais troncos de uma ancestral floresta,”servindo” à (re)imaginação da relacionalidade na qual estamos to dos implicados.
A dimensão paradigmática que os cipós e as matas têm para Advânio nutriram o desejo de aproximá-lo curatorialmente a artistas que, demodos singulares, também observaram linhas, veios, riscos, ramas, fios, tramas, florestas. A partir deste brevíssimo diálogo, ainda que não caiba o anseio de mergulhar nos mundos que lhes são próprios, emerge a provocação a enxergarmos o que, na tridimensionalidade de Lessa, é desenho como forma, pensamento e perspectiva cosmopolítica.
A centralidade gráfica em Mira Schendel (1919-1988) – aqui pontuada através de algumas das duas mil monotipias que a artista realizou ao longo da vida – advém do caráter ontológico que desenhar possuía aos seus olhos. Com um profundo interesse por filosofia e pela teologia católica, para Mira, tanto a vocação metafísica da pintura quanto a dimensão fenomenológica da criação faziam, da arte, um exercício eminentemente inscrito nos “problemas do ser”: “digo não […] àquilo que chamamos arte. À arte chama da figurativa (erroneamente) e à arte chamada abstrata (erroneamente). […] ;” …”Não ao ‘dizer’ e ao ‘não-dizer’, à mínima intervenção do ‘fazer’ e à mínima intervenção do ‘não-fazer’ …”. Às formas, aos conteúdos, às repetições e aos saltos”. Em sua amplitude, os modos de desenhar de Schendel experimentaram uma radicalidade sígnica e plástica que tateou o indizível e o invisível, compreendendo a arte não como uma ferramenta para comunicar códigos ou sentidos prescritos, mas como um exercício filosófico a serviço dos mistérios e das interrogações.
Por sua vez, majoritariamente conhecida por sua obra tridimensional, Maria Martins (1894-1973) aprendeu a esculpir com a artista ucraniana Catherine Barjansky (1890-1965), cujo método de ensino “enfatizava contornos em vez de volumes”, modelando estruturas de arame que eram depois cobertas com argila de dentro para fora, funcionando como moldes para a técnica da cera perdida que serve à fundição de metais. Tal como se vê nas obras que Martins dedicou à Amazônia, na definição de Tirza True Latimer, o resultado dessa técnica é “uma espécie de desenho tridimensional”, aspecto gráfico-planar igualmente notado por Mário Pedrosa ao, com o infeliz tom pejorativo que caracterizou sua leitura da obra de Maria, comentar que os “volumes de sua escultura […] tendem a igualar-se uns aos outros, tratados como se fossem apenas uma superfície escorrida.”
A dimensão gráfica das esculturas de Martins se precipita nos desenhos que antecediam ou se seguiam às suas obras tridimensionais. Em ários deles, a artista analisava (ou, mais raramente, esboçava) graficamente suas esculturas e, noutros – como o aqui exibido –, interpretava o universo cosmológico com o qual sua obra se relacionou. Enquanto seus famosos trabalhos em bronze figuraram narrativas e performaram os movimentos de entidades e plantas amazônicas, em seus desenhos, pinturas e gravuras, tais ontologias eram, por assim dizer, “estudadas” por meio de diferentes arranjos, versões e composições. Étnica e geograficamente distante da experiência da floresta que tanto evocou em sua poética – importante frisar que a artista nunca pisou na Amazônia –, foi desde sua obra gráfica que aquele mundo de abissal relacionalidade e irrestrito imbricamento adquiriu inteligibilidade, explorando continuidades entre figuras ou experimentando o informe enquanto índice de metamorfose.
Assim, entre as linhas, lianas, veios, tranças, galhos e cipós que se interligam ou que emergem no e contra o vazio, para Mira, Maria e Advânio, desenhar (sobre, através e para além do plano) é um modo de instaurar existências, bem como de pensar, perceber e especular acerca da vida e das complexas relações que fazem, do existir, um insistente movimento de contínua transformação.
Aproximá-los é sublinhar o que há de desenho em Lessa, como também inscrever a alta voltagem reflexiva do artista mineiro junto a essas artistas que se dedicaram a pensar e escrever vorazmente acerca da vida íntima, social e espiritual, como revelam os diários e cartas de Schendel devotados à teologia e à fenomenologia, ou os artigos e livros que Martins dedicou à China e à Nietzsche, dentre diversos escritos. A conversa que acompanha este texto é apenas um pequeno índice da potência reflexiva de Advânio Lessa, cujo exercício filosófico deve oportunamente desaguar em futuras publicações.
CLARISSA DINIZ